São João da Madeira

A Última Ceia de Jesus

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Por Bruno Guerra
bruno.guerra@sapo.pt

Introdução
Jacopo-Bassano-Jacopo-da-Ponte-The-Last-SupperMuitos cristãos participam de um culto nas suas igrejas, o qual chamam de ceia do Senhor, Memorial, ou Eucaristia. Porém, são poucos os que conhecem as suas origens da forma como se celebrar o culto-ritual. Para a maioria dos cristãos, a Última Ceia de Jesus foi um Seder1, uma refeição ritualística comemorativa do feriado judaico da Páscoa. De fato, segundo o Evangelho de Marcos2 - e subscrito pelos evangelhos de Mateus e Lucas - a última ceia coincide no primeiro dia dos pães ázimos, quando imolavam o cordeiro pascal e o assavam para ser comido pela família durante a noite. Observando este versículo, só podemos assumir que era realmente uma refeição pascal. Assim sendo, será que comeram o cordeiro pascal, realizando o Seder? Mas será que esta está mesmo associada à festa pascal judaica? Apenas os três evangelhos sinóticos apresentam a última ceia no início das celebrações pascais, sendo que o Evangelho de João dá-nos a indicação de que a ceia realiza-se antes da festa da Páscoa3. Segundo alguns historiadores bíblicos, não se trata de um erro bíblico dos evangelhos, mas, o resultado da forma como celebra a Páscoa nos dias de hoje. Irei procurar explicar isso nos próximos parágrafos.
 A Páscoa Judaica
O feriado da Páscoa judaica comemora a libertação de do Egito. As raízes do festival podem ser encontradas em Êxodo 12, onde o Senhor instrui os hebreus a sacrificar um cordeiro no décimo quarto dia de Nisan, antes que o sol se ponha4, para que as celebrações se iniciem no décimo quinto dia. A refeição consiste no cordeiro com pães ázimos e ervas amargas. O sangue do cordeiro é esfregado nas ombreiras das portas, como sinal, no qual Deus veria e não passaria na naquela casa para matar o primogénito. É uma festa anual que têm a duração de dez dias, sendo o marco de início de um novo ano no calendário judaico. O cordeiro deveria ser consumido naquela noite, por uma ou mais família, em as sobras seriam queimadas. Esse sacrifício mudou com o estabelecimento da nação em Israel e a construção do templo. A Páscoa torna-se numa festa de peregrinação, pois os israelitas deslocam-se a Jerusalém para sacrificar o cordeiro no dia catorze e comê-lo durante na noite do dia quinze5. Os registos rabínicos mostram que ouve uma evolução na cerimónia, de forma a que o ritualizaram de uma forma muito religiosa.  
Última Ceia
Podemos encontrar alguns desses elementos da ceia pascal, incluídos na última ceia. E da mesma forma como é atribuído significados aos elementos da Seder, Jesus também atribui simbolismos aos elementos da ceia. Joachim Jeremias6 estabelece alguns paralelismos que leva a entender a Última Ceia como um Seder, segundo a tradição no tempo de Jesus: a Última Ceia ocorreu em Jerusalém, num lugar preparado para o efeito, realizado durante a noite, Jesus celebra com a “família” de discípulos, é uma refeição realizada em pureza espiritual, é feito o partir do pão, foi consumido vinho, o vinho era vermelho, havia preparativos de última hora e cantou-se um hino, ficaram em Jerusalém, foi apresentado o significado simbólico. Para além desde pontos de Joachim Jeremias e das indicações dos evangelhos, a importância dada pelos cristãos, segundo a sua crença, leva-os a interligar historicamente a Última Ceia e o Seder. No entanto, o ceticismo histórico interpõe-se quanto à fiabilidade histórica dos Evangelhos. Onde foi sacrificado o cordeiro, uma vez que estes não revelam o sacrifício do animal no Templo, nem se o comeram? Também se levanta a questão do porquê dos judeus estarem a julgar e a condenar Jesus durante o feriado mais importante da sua crença. O que leva a acreditar que o Evangelho de João faz a abordagem correta à questão, mas, entra em conflito com o Evangelho de Marcos, que é um testemunho. Os Evangelhos de Lucas e Mateus, são cópias do que Marcos escreveu que foram completadas por outras fontes. Já o Evangelho de João é uma memória, pois, acredita-se que tenha sido escrito perto do ano setenta. Qual dos dois estará correto?  
Qual dos dois está certo?
De acordo com João, Jesus é morto antes do cordeiro para a festa e antes do pôr do sol que daria início à festa. “Antes da festa da páscoa, sabendo Jesus que a sua hora de passar deste mundo para o Pai já tinha chegado, como havia amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até ao fim”. João 13.1 “Era o dia da preparação da páscoa, e quase a hora sexta” João 19.14 “Como era o dia da preparação, os judeus, para que os corpos não ficassem na cruz durante o sábado, porque esse sábado era um grande dia, rogaram a Pilatos que se lhes quebrassem as pernas, e fossem tirados” João 19.31 A questão pode ser entendida de acordo com João. Se a fé cristã afirma que Jesus é o Cordeiro Pascal que é morto pelos pecados, que sentido faria Jesus celebrar o Seder, quando Ele viria a se tornar a sacrifício? Mas, assim, levanta-se uma outra questão: será que João não pretenderia dar apenas um significado teológico? Vejamos o que revelam os sinóticos: “No primeiro dia da festa dos pães asmos, os discípulos se aproximaram de Jesus e lhes perguntaram: Onde queres que façamos os preparativos para comeres a páscoa? ” Mateus 26.17 “Ora, no primeiro dia dos pães ázimos, quando imolavam a páscoa, disseram-lhe seus discípulos: Aonde queres que vamos fazer os preparativos para comeres a páscoa? ” Marcos 14.12 “Ora, chegou o dia dos pães ázimos, em que se devia imolar a páscoa” Lucas 22.7 Reparem numa coisa: estariam as autoridades judaicas a contrariar a Lei? Será que teriam perdido alguma informação histórica para o seu evangelho? Também podemos ver que os elementos que compunham a refeição eram comuns a qualquer refeição. Se era o Seder, fica a faltar as ervas amargas, os quatro copos de vinhos e o cordeiro assado. A meu ver, torna-se plausível o Evangelho Segundo João, apesar das questões que este levanta. O que revela que a refeição de Jesus e os seus discípulos não foi um Seder. Com isto Joachim Jeremias está errado quando afirma que a última ceia foi o Sedar. Afinal de contas, o que ele descreve assemelha-se com muitas outras refeições judaicas. “
Última” Ceia? Ou primeira de muitas?
 Talvez devêssemos observar o comportamento dos primeiros cristãos e dos apóstolos. O que fizeram eles depois que o Senhor subiu aos céus? “E, perseverando unânimes todos os dias no templo, e partindo o pão em casa, comiam com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus, e caindo na graça de todo o povo. E cada dia acrescentava-lhes o Senhor os que iam sendo salvos. ” Atos 2.46-47 Aqui podemos observar que eles partiam o pão, em casa, fora de um contexto pascal. O que significa que a última ceia não tem rigorosamente nada que interligue historicamente com o Sedar. Na realidade, não faz sentido nenhum chamar de Última Ceia, o que viria a ser a primeira de muitas. Existe um antigo manual da igreja cristã, o Didache, que sugere a última ceia como uma refeição judaica comum, algo descrito no capítulo 9 e 10 como Birkat há-Mazon. Também após a morte de Jesus, as comunidades cristãs levantaram a questão de quando deveriam celebrar a Páscoa. Com isto gerou-se o que é conhecido como controvérsia Quatrodecimana. Os Quatrodecimans eram cristãos que defendiam a celebração da Páscoa cristão com a Páscoa judaica, independentemente de ser um domingo ou não7. E assim foi desde o século V d.C., em que a Páscoa passou a ser celebrar a um domingo. Com isto, dá-se a divergência entre os primeiros cristãos, em que a explicação mais credível que a História nos dá se deve ao encorajamento da celebração da Páscoa, segundo datas que faziam sentido para a Fé de cada comunidade. Alguns estudiosos do Novo Testamento afirmam que Lucas procura incentivar os cristãos a não celebrar a Páscoa baseando-se em Lucas capítulo 22, do versículo 15 ao 18. No entanto, outros acham que está associado a um período de jejum, segundo as tradições judaicas, que antecede a Páscoa. Há alguns que avançam com uma nova teoria, em que os cristãos judaicos associam a última ceia ao seder, de forma a limitar a prática aos judeus, em Jerusalém e na Páscoa. Estas teorias mostram que até aos dias de hoje, o debate sobre a Páscoa no seio cristão ainda gera controvérsia.  
A Explicação mais Lógica - Conclusão
Como historiador e cristão, acredito que nenhum dos evangelhos estão errados, no que toca a assuntos de doutrina, porque Paulo, escreveu o seguinte: “Expurgai o fermento velho, para que sejais massa nova, assim como sois sem fermento. Porque Cristo, nossa páscoa, já foi sacrificado. Pelo que celebremos a festa, não com o fermento velho, nem com o fermento da malícia e da corrupção, mas com os ázimos da sinceridade e da verdade. ” 1 Coríntios 5.7-8 Para aqueles que se convertiam ao cristianismo, já não fazia sentido que se celebrasse a Páscoa segundo as tradições antigas. Primeiro, como mostram os sinóticos, Jesus não celebrou a Páscoa, e João mostra Jesus a ser o Cordeiro de Deus pelos pecados; e segundo, conforme a fé cristã, se Jesus se torna o último e derradeiro sacrifício pelos pecados, não é preciso sacrificar mais como ditam as tradições antigas da Páscoa. Isto significa que os quatro evangelhos, não pretendem relatar a forma como as coisas se passaram, mas, o que significaram e a sua repercussão para a vida de todos os cristãos. À medida que o cristianismo ganha força, também se reforça a ideia do sacrifício de Jesus correlacionado com a Páscoa de Êxodo. Já historiograficamente, os quatro evangelhos levantam dúvidas. Não se pode afirmar que é João que está historicamente correto, ou os sinóticos. É uma questão que recai exclusivamente do ponto de vista teológico e da fé pessoal de cada cristão, tal como já referi a minha. Há que salientar que apesar da Bíblia nos oferecer pistas sobre a História, não nos dá o panorama da História da Civilização completo, nem da História do Cristianismo. É preciso investigar. O próprio João escreveu no final do seu evangelho que muito haveria para contar, mas, apenas escreveu algumas coisas para que fossem apenas relativos a matéria de fé8. Será que isto torna a Bíblia um livro para não se levar em conta? De maneira nenhuma! Pelo contrário, torna-a mais apetecível para podermos chegar à Verdade e compreender a Civilização. Então, porque nas igrejas modernas se come o pão e se bebe o vinho, à semelhança da Última Ceia? As igrejas, desde os seus primórdios até aos dias de hoje, celebram ocasionalmente, ou sempre que se reúnem os fiéis, o comer do pão e o beber do vinho, por causa do que Jesus disse, citado no evangelho de Lucas, e mais tarde, relembrado por Paulo: “E tomando pão, e havendo dado graças, partiu-o e deu-lho, dizendo: Isto é o meu corpo, que é dado por vós; fazei isto em memória de mim. ” Lucas 22.19 “Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou pão; e, havendo dado graças, o partiu e disse: Isto é o meu corpo que é por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente também, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o novo pacto no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que o beberdes, em memória de mim. Porque todas as vezes que comerdes deste pão e beberdes do cálice estareis anunciando a morte do Senhor, até que ele venha. De modo que qualquer que comer do pão, ou beber do cálice do Senhor indignamente, será culpado do corpo e do sangue do Senhor. “ 1 Coríntios 11.23-27 Com base nestes versículos, milhares de cristãos pelo mundo, celebram este ritual, conhecido como memorial, santa ceia, ou eucaristia, consoante a declaração de fé de cada igreja. Isto quer dizer que este tipo de culto-ritual, não está associado à Páscoa, nem ao Seder, mas, a uma forma de cultuar o Salvador e o seu sacrifício, relembrando esse momento e enfatizando a simbologia que o pão e o vinho têm para este marco na História Cristã.

1 O Seder (ou ordem) é a refeição cerimonial judaica que se realiza na primeira noite das comemorações da Páscoa Judaica, que recorda a libertação da escravidão egípcia.
2 Marcos 14.12
3 João 13.1
4 Segundo a tradição judaica o novo dia começa quando o sol se põe.
5 Esta prática pode ser observada em 2 Crónicas no capítulo 30 e 35 no reinado de Ezequias e Josias.  6 O livro apareceu pela primeira vez em 1935 e foi revisado e traduzido várias vezes depois disso. Os 14 paralelos estão listados em 1960, terceira edição, que foi traduzido para o Inglês em 1966.
7 Há que ter em conta que o calendário judeu foi e é lunar, o que significa que a noite após o de Nisan calha em Lua Cheia, seja um sábado ou não.
8 João 20.30-31

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